26 de dezembro de 2007

Las ultimas monedas

A viagem tinha sido mais onerosa do que qualquer previsão feita, isso era fato. Mas mesmo ante as dificuldades impostas pela falta de dinheiro, além da imensa barreira cultural que era a língua nativa e tantas outras que se apresentaram no caminho, juntei com bastante esforço moedas de pesos argentinos de diferentes valores. É meio que uma mania minha colecionar essas coisas diferentes que me aparecem na frente e achei que seria uma boa idéia retornar ao Brasil com umas moedas para poder me recordar bem da viagem (talvez lembrar da falta de dinheiro dessa viagem em particular).

E foi naquela espera demorada no aeroporto de Mar del Plata, cujo movimento na época de inverno era de um avião por dia, que nos encontramos eu e minha mãe perplexados pela mais profunda falta do que fazer. Nosso vôo sairia muito mais tarde naquele dia e estávamos com o dinheiro contado para pernoitar em Buenos Aires aquela noite, nossa última em terra argentinas.

Mas foi a saudade, que em palavra só exista no português mas é o sentimento mais globalizado do mundo, que desencadeou simultaneamente uma inquietude em nossos corações. Minha mãe estava apreensiva em ver novamente meu irmão mais novo e eu a minha amada. Decidimos procurar por um orelhão no aeroporto que, certamente, faria ligações internacionais.

Um fato curioso é que os orelhões de lá aceitam moedas de peso para efetuar ligações, bem à moda dos nossos telefones públicos antigos que funcionavam com fichas e se tinha um certo tempo limite para falar. Sacamos as moedas e desembainhamos o fone. Instruções, instruções: muita burocracia para ligar para casa. Primeiro minha mãe que ligou para minha avó e falou com meu irmão, emocionada e já cansada das terras estrangeiras.

Em seguida, conferi o tanto de moedas que havia guardado. Passou-me pela cabeça naquela hora o preceito mais fundamental das relações humanas a dois: a reciprocidade do amor. Ela talvez jamais entenderia o tanto de esforço que era me desprender daquelas poucas moedas para lhe falar um minuto, no máximo dois. Ouviria minha voz e pensaria "ele está bem" quando na verdade do outro lado do gancho uma saudade já quase desesperada devorava a calma e fazia as horas passarem mais devagar. Para mim aqueles instantes seriam a mais poética representação do nosso relacionamento até então: os amados que estão distantes.

Engoli toda a pensação e num ato de impulso puxei o telefone para mim e comecei a colocar as moedas. Umas demoraram mais a cair, mas coloquei o tanto que achei adequado falar. Estava nervoso, ancioso. Mas todo o mundo passou a importar pouco, inclusive as horas que se seguiriam (as piores de toda a viagem) e a vontade pouco racional de juntar moedas estrangeiras quando a voz saiu como uma injeção do mais forte calmante:

- Alô?

14 de dezembro de 2007

O Tom nunca muda

A única coisa que me faz chorar como uma criança, não de tristeza, não de felicidade: bossa nova. Às vezes boto umas músicas de Vinícius, Tom e dá toda aquela quentura no peito. E engraçado que, mesmo eles já não estando mais entre nós, sempre consigo achar uma música nova deles, uma música menos famosa mas que tem lá seu ritmo único e uma letra gostosa de se cantar.

É estranho como isso não acontece nas músicas de hoje: a maioria das letras possui uma letra que nos penetra por algum pouco tempo para logo depois sumir na memória. Já com a bossa a coisa é mais fina. As músicas falam quase sempre de um Rio de Janeiro que já não existe mais, de amores como não se vive hoje, tem ritmos que nenhum compositor dos tempos de hoje consegue criar.

E tudo isso me fez concluir que na verdade esse movimento musical ímpar na música brasileira se fez único pelas circunstâncias de uma Copacabana, uma Lapa como nunca seremos capazes de ver novamente. Incrível como você é capaz de se perceber cada gota cristalizada de uma chuva parada no tempo nas mais belas músicas que representam o movimento ('Chega de Saudade', 'Wave', 'Tarde em Itapoã', entre outras); Uma chuva como não se regam os solos desse Brasil a muito tempo (hoje os altos teores de dióxido de carbono só fazem chover ácido).

Cultuar o passado talvez não agrade tanto aqueles que tem uma visão progressista, mas acho difícil resistir a uma bossa quando o que temos para ouvir por aí perde tanto em qualidade. Muito pelo contrário, aquela época que tanto pecou pelo excesso de lirismo nas canções talvez possa injetar um veneno qualquer que amoleça os corações de pedra de uma geração cada vez mais alheia aos próprios sentimentos.

24 de novembro de 2007

Os outros

Certa vez no metrô, encontrei um menino, esperto de tudo, que estava impressionado com a velocidade que o vagão atingia. Era a única figura que se destacava na multidão tão acostumada com o dia-a-dia do transporte público, fingindo que surfava enquanto os trens faziam uma curva em alta velocidade. Sentou-se ao meu lado. Fiquei inqueito e tirei os olhos do meu livro para puxar um assunto qualquer. "Gosta de ler?". Respondeu afirmativamente e até citou alguns livros preferidos. Fiquei encantado com aquele guri, que desceu na estação seguinte junto com a mãe que ralhou com ele por falar com estranhos.

Naquele exato momento me deu um estalo de querer escrever para as crianças. Quis medir a minha infância com a dele, mas jamais saberei (os trens voltaram a se locomover) o que aquele menino esperava encontrar nos livros, ou ainda o que fazia ele gostar de ler. As perguntas brotavam aos milhões.

E naquele instante eu me questionei o que eu gostava de ler e o porquê que eu lia, por exemplo, aquele livro ali, bem nas minhas mãos. A resposta não caberia aqui e vou emiti-la. Pensei se o meu porquê de ler seria em algum momento semelhante ao porquê daquele garoto. Talvez a maioria das motivações não fosse nem em parte idênticas, mas um algo em comum com certeza existia.

Pensei que escrever seria uma tarefa muito árdua se eu tivesse que me restrigir a um público muito restrito, como apenas aquele menino que a alguns instantes saíra com sua mãe do vagão. E eu, como quem escreve, pensei que deveria escrever despreocupado com o público que me lesse, pois o que eu escrevo é pessoal, mas é um algo que desejo compartilhar com todos, inclusive com aquele menino se algum dia ele achasse algo escrito por mim. Deveria centrar o que escrevo ao redor de mim mesmo. Deveria viver centrado ao redor de mim mesmo.

4 de novembro de 2007

Rabiscos Inconcretos

É preciso perder a liberdade para saber valorizá-la. Seguindo essa premissa, dois eus se separam em espaços diferentes da escrita e se encontram para compor a minha existência, apesar dos atropelos e confusões. E dessa vontade ambígua de querer e não querer escrever, nasceu o meu caderno, onde guarde recortes poéticos da minha vida. Torno-os indecifráveis e irreconhecíveis, ao ponto de que nem eu mesmo consigo lembrar o que me ocorreu.

Acredito que se você quer transmitir algo de diferente nos seus textos, o seu eu não deve importar. Há causos e causos, cada pessoa vive e tem experiências de vida diversas. Escrever pra mim é o ponto de encontro do meu sentimento com o sentimento do todo. É a generalização das idéias, provocação das discussões. Acredito que apenas somos capazes de entender quem somos e definir pontos de vista se pararmos para pensar em tudo que fazemos e tudo que os outros fazem. A literatura pode ser uma mentira do ponto de vista de que grande parte das coisas que se escreve é ficção. Mas ainda assim, é possível aprender muita coisa com personagens, situação dramáticas e literárias. Os contos que líamos quando crianças pregavam bem isso, os livros e textos literários de hoje, com nós crescidos, não é diferente.

Quanto à liberdade: no meu caderno tenho liberdade, principalmente para errar. Tenho uma cobrança pessoal muito forte, e às vezes sinto que isso inibe alguns textos de saírem. Mas lá eu posso fazer qualquer coisa, posso tentar, posso errar, posso mudar, tudo simples como a borracha e o lápis. Se por um lado aqui tenho toda essa pressão pessoal por um algo de qualidade, lá é onde eu relaxo o braço e as idéias.

Juntando isso, forma-se o caderno de idéias pré-maturas e sentimentos confusos. Mesmo com essas características tão peculiares, às vezes me sinto mais à vontade de escrever lá do que aqui. Talvez por essa cobrança lá ser atenuada. Mas ainda assim, gosto de manter comum no blog e no meu caderno esse aspecto literário e confuso. Se por ventura ele parar em mãos erradas, vão se dar conta de que, talvez, a vida da pessoa ali descrita não é a minha, mas de um outro alguém.

31 de outubro de 2007

Todas as cartas de amor são ridículas

Foi relendo texto passados, rascunhos e idéias em forma de semente que eu fui dar de cara com uma "carta" muito especial. Quando escrevo um texto lírico, tenho o objetivo de causar um baque no leitor, despertá-lo para algo que acredito ser verdadeiro. E curiosamente, reler essa carta direcionada (cujo o nome da interlocutora não importa) fez com que eu caísse numa armadilha feita por mim mesmo. E para compartilhar esse momento tão sutil que tive, eis o texto, do "rascunho" para o blog.

Declaração

Que a minha loucura seja perdoada
porque metade de mim é amor
e a outra metade também.
Ferreira Gullar - Metade


Eu preciso te confessar que desde que meu peito experimentou aquela inquietude, eu não tenho tido meu sossego. Se me pego parado, penso em você. Eu, que até a pouco tempo, me achava cético para os assuntos do coração de repente surpreendido, pego no contra-pé. Não esperava as suas palavras, não esperava ler a palavra amor sob um contexto tão confuso, tão complicado.

"Onde você mora?" "Eu moro no Paraíso, perto daquela igreja, sabe?" "Eu nunca estive lá, mas minha vida inteira é isso, um querer estar no Paraíso e sair desse lugar." - pensei, mas não falei.

Hoje eu passei por onde você mora. Tomei um café demorado e me deixei estar lá. Eu amo a Avenida Paulista, é um lugar onde me sinto à vontade como um paulistano, lá meu coração bate mais alto. Mas minha âncora no meu lugar era um pensamento perdido de alguém que estava longe. Saudade. Se dependesse de mim, tomaria café até você voltar. Pensei na sua companhia ali também, dividindo aquele espaço que se tornara tão sagrado para mim, uma conversa despropositada falando da vida, do que já se viveu. Paguei a conta e sai.

Cada passo de volta para casa me remetia a um verso, uma poesia que não tinha por onde sair e morria em mim mesmo. Eu ouvia o peito um pouco mais acelerado e era a sua lembrança, de um algo que a gente não havia vivido ainda. E lá se ia meu sossego, num ônibus de São Paulo, rumo a minha casa. Meus olhos ganharam um viés que só sabe te enxergar e te lembrar.

E hoje, aqui, nesse escrito, eu sou mais um coração do que duas mãos escrevendo. Não sei o que o futuro nos aguarda, nem sei se de repente você é a pessoa certa, a pessoa que eu aguardo, mas naquela nossa conversa você ganhou mais do que meu respeito apenas. É necessário respeito aos loucos, aqueles que vivem além da lógica, se é que ela existe no dia-a-dia. Você me mostrou mais do que apenas um olhar e uma demonstração de cuidado com o seu medo de me magoar, e digo que aos poucos você está me ganhando. Balanço agora uma chave na sua frente e digo "se quiseres meu coração, a casa é sua e pode entrar". Já não tenho tanto medo da solidão, e por isso mesmo não tenho medo de quebrar a cara em outro amor. Independente do que será do amanhã, se um sim ou se um não (o tempo dirá), saiba que você conquistou para sempre um espaço no meu coração. Sou uma promessa: enquanto não houver uma resposta, sou teu. Porque o teu amor "comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte".

Beijos.

22 de outubro de 2007

Cumpleaños

Como sempre, aquele famoso texto de transição do hoje e do 20 de outubro do ano passado. A motivação para escrever é justamente poder análizar tudo o que se passa de um ano para o outro, poder quantificar e qualicar o que mudou em minha vida. Pensamos: passou tão rápido. Mas é fato que nessa passagem rápida de um ano para o outro, temos 365 dias vividos com maior ou menor intensidade. É mais ou menos isso que quero recuperar nessas linhas: os picos de felicidade e tristeza e fazer toda uma análise desse gráfico complicado e irregular.

Posso descrever esse período claramente como tempos em que deixei a escrita de lado. Não por falta de paixão, mesmo porque ficar assim, de frente para o computador escrevendo sobre uma besteira qualquer simplesmente me apaixona. Mas dei espaço para coisas novas aparecerem e acontecerem. Acho fundamental para quem escreve ter repertório sobre o que escreve, e isso me fez muita falta em certos pontos da minha vida. Gosto de fantasiar, mas preciso de um toque de veracidade no que escrevo, principalmente quando o objetivo é escrever uma verdade de uma forma diferente.

Conheci muitas pessoas. Integrei-me e me entreguei totalmente a equipe de atletismo da faculdade, que virou minha paixão por um bom tempo. Ainda na faculdade, conheci os bixos desse ano. Pena não conseguir conversar tanto com eles quanto eu gostaria. No trabalho voluntário, conheci muitas e muitas pessoas. E em tão pouco tempo, todas essas pessoas ganharam uma notoriedade maior e menor. Nunca esquecer dos meus bons amigos, que tiveram de brigar bravamente dentro do meu coração para conseguir um espaço na minha agenda apertada.

Acho que talvez o grande destaque dessa fase de transição tenha sido justamente o trabalho voluntário. Sempre tive uma vontade imensa de mudar o mundo para melhor, em fazer algo diferente do famoso discurso de que devemos cuidar do mundo em que vivemos. E foi nessas várias experiências ao longo desses meus 22 anos que eu pude perceber o quão gratificante é para si mesmo poder ajudar o outro e o quão agraciados nós somos, com as nossas vidas que por vezes achamos medíocres. Foi ajudando o outro que pude rever valores e colocar em prática os valores que foram forjados ao longo do tempo, baseados no princípio de coletividade e responsabilidade social.

No coração não foi o ano mais feliz. Senti-me mais covarde. Não fui capaz de grandes loucuras de amor, principalmente porque fiquei cada vez mais decepcionado com o mundo. Nasci com um coração de um século ou mais de atraso. Penso muito a respeito do romantismo tão particular em mim e tento imaginar se serei feliz (de novo) com alguém ao meu lado. Fico chateado com as pessoas que me cercam e com a maneira que usam seus corações. Fui testemunha indireta de traições, separações, brigas. Fica difícil imaginar se aos 23 conseguirei ser mais feliz nesse quesito.

O saldo dessa conturbada entrada nos 23 anos de vida é mais do que positiva. Senti-me mais vivo, senti-me mais feliz e aprendi, sobretudo, a controlar um pouco mais meu coração sobre as mais diversas questões. Tenho medo de ter ficado um pouco mais alheio a um monte de coisas que eram me antes preocupações fundamentais, mas acredito que tudo isso faz parte do imutável processo de amadurecimento. E a cada ano que passo, percebo que as brincadeiras ficam cada vez mais de lado e a responsabilidade e o aprendizado se tornam nossas principais companheiras. Que venham os vinte e três.

9 de outubro de 2007

Retrato III

Na calada da noite, os homens rastejavam sobre o mato alto, trajando uniformes camuflados manchados de terra, munidos de armas pesadas. De repente, um pedido de silêncio mais a frente. A caçada tornara-se mais fácil. As ordens eram de cercar o acampamento e dominar todos. Rápidos como os disparos que se seguiram, os homens renderam todos no acampamento. Alguns foram mortos ali mesmo. Um deles gritou. Foi levado a uma escola nas redondezas.

...

Jogaram-no numa sala e o mantiveram preso. Alguns soldados ficaram impressionados quando foi feita a confirmação da identidade do homem. Sentiram-se orgulhosos e comentaram com alguns passantes que faziam seu caminho para o trabalho no campo. Todos o observavam do lado de fora da escola por uma janela, a uma distância segura de sua periculosidade.

Mas do lado de dentro daquela sala de aula, o capturado não fazia nada a não ser mostrar resignação de bicho domado. Sabia bem seu destino e enchergava, claro como a água, que toda a sua luta até ali tinha valido a pena. Fatalmente seria pego, uma hora ou outra. Uma criança, que tinha sido erguida pela mãe para que pudesse ver o homem dentro da sala, olhou-o, barbudo e sujo de muito tempo. Ele levantou seu olhar, que foi de encontro ao olhos do garoto que o viam impressionados. Ele apontou para uma parede com um dos dedos, mostrando um alfabeto preso num varal improvisado na parede.

O homem que comandava a situação toda pediu aos trabalhadores para dispersarem o local. Comentou algo com os homens todos na porta "o presidente deu ordens, podem escolher entre vocês quem fará o serviço". Houve uma discussão impregnada de orgulho e barulho por parte de alguns deles. Depois de um tempo, entraram na sala em silêncio. O homem se levantou como quem iria receber uma sentença já sabida e dirigiu a palavra aos homens armados "Eu sei que vocês estão aqui para me matar. Atirem, covardes, vocês vão matar apenas um homem.". Sem mais palavras, os homens apontaram as armas e acertaram-lhe tiros nas pernas e, logo em seguida, no peito.

Deram uma risada leve, como se tivessem livrado o mundo de um grande mau. De espólio ficaram seus pertences que foram repartidos entre seus executores, com os mais valiosos para o comandante da operação triunfante. Com medo da lenda que cercava aquele homem martirizado, cortaram-lhe as mãos e levaram seu corpo algum tempo depois para exibir a imprensa, killed in action. E fotógrafos famintos fusilavam seu corpo com flashes de luz ao lado de homens fardados cheios de orgulho, como pescadores que pegaram o mais lendário dos peixes. Mas mal sabiam eles que aquele era apenas um peixe, o mar ao longe batia e rebatia com o barulho de ondas indiferentes como a verdade.

8 de outubro de 2007

À procura do estilo perfeito

É necessário de tempos em tempos revisitar algumas das nossas paixões para entender o que nos prende tão profundamente ao que amamos de verdade. E embora meio abandonado o hábito, não pude resistir à pergunta de uma certa Daniela sobre o escrever e me senti obrigado a remontar épocas remotas que remontam uma procura por uma identidade como escritor e poeta.

Tenho muitas motivações para escrever, tudo varia com o momento. Há textos que são retratos do meu dia-a-dia, ou um fato surpreendentemente novo o qual eu faço questão de escrever para mais tarde me lembrar. Escondo meu nome em meio a uma situação, em personagens e cenários fictícios, mas que remontam no seu âmago uma história que, ao repassar os olhos em cada palavra, remonte um momento especial para mim.

Escrevo quando me bate uma idéia. Levam alguns livros, poemas, contos e muita rotina (que tem todo o seu quê de poesia também) até que algo bom de verdade apareça. Gosto de ser criativo e original nas minhas idéias, fazer com que os meus poucos leitores (mas muito especiais!) se deparem com algo surpreendente que os encante e provoque uma discussão sobre aquilo que se acabou de ler, mesmo que subconsciente.

Os poemas, hoje tão raros, escrevo quase sempre pensando em um amor distante que fica quase sempre na distância. Mas nesses poemas, posso me sentir mais perto de quem amo e acreditar que dentro de mim pude cultuar algo que é verdadeiro.

A base de tudo talvez remonte o tema de uma procura por estilo. Escrevo contantemente, em várias formas, para tentar adquirir uma identidade literária. Até algum tempo atrás eu me julgava um conjunto desconexo de recortes de estilo. Já hoje, percebo que tenho algo mais sólido montado sob a base de mim mesmo. Escrever representa para mim, portanto, mas do que um simples ato ou despretenciosa verborragia: é uma maneira de me conhecer melhor como ser humano e, ao mesmo tempo, transmitir a minha visão de mundo impregnada com poesia, na qual acredito de maneira tão forte. Mas essa visão já é uma outra história.

8 de agosto de 2007

Uísque e cheiro de cravo

Perdeu o compasso da música por um instante, mas retomou o ritmo tão rápido que mal se percebeu. Já estava acostumado com uma coisa qualquer atrapalhando seu pensamento bem no meio da música. Era a garçonete que passava com uma barra de saia curta demais, uma risada um pouco mais alta do lado de fora do bar, as buzinas irritadas da Avenida Paulista. Mas os ensaios contínuos nos intervalos entre a chegada do trabalho e o jantar faziam dele e seu baixo uma única entidade que resoava em todo bar.

A escolha do instrumento não fora casual. Além, é claro, do charme que o instrumento em si possui, a postura com que o empunhava, o baixo para ele é sobretudo o tom quase subliminar da música. As pessoas no bar ouvem o conjunto a tocar e sentem bem no fundo do ouvido aquela levada de tom que até parece um eco, o último ruído da música. Esse era o músico: não gostava de se sentir percebido diretamente, e sim pela dica do seu instrumento. Era uma maneira de se exibir subentendido, mesmo sem cantar ou fazer qualquer pose que o estilo cobrasse.

Mas naquele dia ele errava mais do que o usual. Os companheiros davam puxadas de lado para beber um copo qualquer da bebida de sua preferência e o questionavam "que que tá acontecendo companheiro?". Era uma moça que ouvia atentamente o conjunto numa mesa próxima ao canto esquerdo de frente pro palco. Estavam ela e mais três amigas que se entretinham com uma conversa qualquer. Só ela olhava para o palco improvisado próximo a uma das paredes do bar.

Errar para ele era inquestionável, mas um breve desvio de olhar fazia ele tocar uma nota errada, perder o tom ou soltar a corda antes da hora. Não queria errar justamente porque queria que seu som chegasse até ela e ela o percebesse de sua maneira única. Mas quanto mais pensava nisso, mais errava e mais bebericava do seu copo de uísque com três pedras de gelo já meio derretidas.

Ao final da apresentação, soltou o colarinho da camisa como quem se desprende de um nó de corda na forca e respirou. Ela aplaudia e puxou logo em seguida, de maneira enigmática, um cravo branco de algum lugar que seus olhos não alcançavam. Jogou-o ao palco na direção do baixista já meio zonzo depois de tanta bebida. O homem estendeu o braço em direção a pegá-lo, mas como uma miragem a flor sumiu do palco. Virou-se para a mesa onde estivera a mocinha e lá já não estava mais, talvez nunca estivesse. Vexado, tomou um táxi e foi para casa.

29 de julho de 2007

Desenhos na parede

O caminho que tomamos muitas vezes diverge daquilo que determinamos como objetivo. E isso vale para a vida como um todo, todas as coisas. Mas aí, você se pega qualquer dia desses e percebe que uma mudança surgiu, como um nódulo sob a pele, um câncer. As letras deixaram de ter aquele gosto de prato favorito em dia de fome e tanto a leitura como a escrita foram terrivelmente abaladas por um marasmo quase preguiça.

Uma conclusão meio precipitada: o amor e a escrita vão juntos, de mãos dadas. Será? Talvez a falta de adrenalina e taquicardia tenham feito as palavras chatas e pouco emocionantes, como os amores que andam em falta. A vida anda mas o amor pára. E causa esse desconforto porque a vida vai bem, obrigado. Parece que ainda há inspiração (quantos textos até hoje não imploram para serem escritos?) mas falta ação: faltam dedos dedilhando um teclado sem música.

Como eu vivo então? Simples: colho impressões que me são legadas. Não há meios audiovisuais existentes que me permitam compartilhar tanta coisa com vocês, sempre o fiz pelas palavras mas essas me faltam (na verdade eu ando em falta com elas). Acredito que minha vida tem enriquecido de sobremaneira que fiquei extasiado com tantas coisas que aconteceram. É um misto de acontecimentos que inevitavelmente provocam uma reflexão e exigem ser escritos. No entanto, essa disfarçada apatia se esconde por trás de desenhos pintados em uma caverna; são símbolos que mais tarde, quando a imaginação for buscar, terão se transfigurado em borboletas que por si só justificam sua existência e dispensam explicações ou traduções.

16 de junho de 2007

Falta de memória

Acho que o ponto de partida mais adequado seria citar a conversa entre eu e minha mãe conversando sobre a diferença de gerações, a minha e a dela. Minha mãe, com toda a mais sincera naturalidade, afirmou que é difícil entender os valores dos jovens de hoje levando em conta que na época em que ela era jovem (e não faz tanto tempo assim) vários padrões éticos e comportamentais eram seguidos e hoje eles estão deturpados. Eu concordei com ela, mas fiz questão de defender a minha geração: os valores mudam com o tempo. Até concordei que vários comportamentos hoje tendem ao desrespeito, infelizmente, mas que isso nada mais era do que uma conseqüência do ritmo alucinante ao qual nós fomos submetidos. Hoje tudo precisa ser rápido, instantâneo: a comunicação, a comida, a leitura, a aquisição de informações, etc. O impacto dessa rotina é visível hoje nos jovens da minha geração e dos mais novos. Temos menos paciência para lidar com coisas complicadas, crianças com vontade de se tornar adolecentes (namoros, transas, drogas) e falta de memória, dentre outros motivos que podem ser facilmente minados do contexto todo desse parágrafo.

A questão fundamental: falta de memória. Não sei se isso acontece com vocês, mas eu, por exemplo, admito ter uma memória fraca. Claro que alguns fatos marcantes eu acabo lembrando sempre (são lembrados pelo fato de serem marcantes), mas algumas lembranças de passado recente somem na minha cabeça. E isso realmente me perturbou quando percebi que cheguei a esquecer nomes e rostos de antigos colegas de colégio/escola, viagens, até mesmo a própria rotina de alguns tempos atrás.

Claro que tudo isso pode ser perfeitamente natural (afinal acho difícil se lembrar de tudo em uma vida), mas acredito seriamente em alguma correlação com esse ritmo de vida alucinante que nós temos hoje e essa perda de memória: como precisamos absorver conhecimento num ritmo muito rápido, nossa memória acaba não fazendo um mapeamento das nossas lembranças e memórias são sobrepostas. Claro, um neurologista talvez poderia explicar melhor, mas acho que é isso que acontece. E fico preocupado com isso, pois temos um sistema de vida que exige que aprendamos rápido justamente para que tenhamos capacidade de termos bons momentos. Vulgo, é um sistema parcialmente auto-destrutivo, onde o que restam são lembranças muito especiais que tenham marcado nossas vidas.

Eu gostaria muito de acreditar que algum dia o ser humano tomaria consciência da necessidade de uma rotina menos massante para aumentar substanciosamente a sua qualidade de vida. Mas não vejo um momento preciso em que isso pudesse ocorrer: corremos cada vez mais e nossa incansável maratona de vida consome cada vez mais o planeta. Já tive a perspectiva de que um dia eu teria tempo parar respirar da minha rotina e hoje a dúvida que me atormenta é outra: algum dia, enfim, pararemos?

9 de junho de 2007

Cadê?

É fato que às vezes quem escrevi sempre pode sumir. Talvez seja o meu caso, mas eu analizaria o quadro de um ponto de vista diferente: temas nunca pararam de surgir na minha cabeça. As coisas pequenas principalmente, essa série de acontecimentos, objetos, sentimentos que alimentam textos a rodo nesse e em outros blogs que raramente são reparadas por uma pessoa "comum". Escrever de certa maneira é mostrar a existência desses diversos lados da moeda (muito mais do que dois, mas comumente separados por verdade e mentira, vai da crença de cada um).

Mas mudanças radicais insurgiram na minha vida nesses últimos tempos: o lado acadêmico, no qual eu entrei com força total esse semestre e já vejo sua força quase nula para mover uma montanha de coisas para fazer, estabelecimento de novas metas no âmbito de trabalho e acadêmico também, início do meu estágio, que me garantiu o dueto estabilidade financeira/total falta de tempo, e isso tudo associada a velha amiga depressão que já acompanha os ossos de João há algum tempo.

Foi essa semana que talvez tenha surgido um começo de mudança. Larguei tanta coisa de lado para viver algumas coisas mais intensamente, que de repente a saudade de velhos amigos, de velhos hábitos e mesmo da periódica digitação de um texto nesse espaço me causaram um vazio imenso. Perguntei-me de maneira bem sincera "será que vou parar de escrever depois de tanto tempo?". A perspectiva de uma resposta me deixou vexado. Já não tenho mais aquele tempo todo para a literatura. Saudades até de carregar um Drummond embaixo do braço (há quem diga que já havia virado meu desodorante), das leituras corridas e quase embaralhadas no ônibus. Era esse momento leve que me dava sonhos e esboços de criatividade longe da minha correria. Hoje sou um paulistano até o nervo que puxa na testa.

Mas não, é preciso ir contra isso tudo. Já tive lapsos de tempo muito grandes sem escrever uma única linha que não fosse um trabalho ou coisa que o valha. Decidi ficar no mundo das letras e tentar retomar, não o ritmo que anda cada vez mais agitado, um pequeno pedaço de estilo. Esse sim foi trabalhado a sangue nos últimos anos e não pode morrer. É preciso escrever sobre qualquer coisa, mesmo uma mentirinha.

2 de maio de 2007

Plágio

Era numa livraria localizada em um bairro luxuoso de São Paulo que o mais recente livro de um emergente escritor estava sendo lançado, com direito a champagne, convidados engravatados e sessão de autógrafos. A crítica, que teve acesso a alguns volumes da mais recente publicação, encheram páginas e mais páginas de elogios e adjetivos extravagantes para descrever a nova obra e fizeram comparações desmedidas sobre a primazia de seu estilo com vários autores renomados da literatura brasileira.

Com toda pompa possível, no clímax da festa quando todos estavam com as barrigas fartas de canapés e as conversas giravam em torno de seus próprios rabos, o novíssimo escritor (não passava dos 30 anos e essa já era sua segunda obra publicada) pediu a licença de todos os presentes para desfiar no ouvido de todos um discurso previamente preparado. O cujo do discurso desenterrou as mais mofadas palavras do dicionário e chavões do século passado e do anterior a este para agradecer a presença de todos, às criticas dos críticos, à editora pelo destemido ato de apostar num escritor tão jovem e inexperiente (conforme a sua modéstia) e aos diversos familiares e amigos que sempre o apoiaram, inclusive nos momentos de dificuldade. A palavra se fez vencedora, segundo ele próprio, frase a qual fechou o discurso com aplausos da distinta burguesia paulistana.

...

A mais completa falta do que fazer me leva vez ou outra a ir a uma livraria. Não sem motivo: vou namorar os mesmos livros que, por falta de dinheiro, não posso ainda comprar. Faço sombra na e tiro o pó da estante (note o singular) de livros de poesia. Mas isso nunca me furtou em ver os livros pop, aqueles que tem tiragens a perder de vista, de autores comerciais que podem não primar pelo seu estilo, mas sabem agradar à maioria da população. Passo os olhos em títulos curiosos, em obras primas de trabalho gráfico (afinal, a capa também é parte do livro) e finalmente nos imponentes best-sellers, ou ainda, "o que os leitores dessa livraria estão lendo". Por um gesto um tanto inexplicável, tomei em minhas mãos o livro daquele recentemente consagrado escritor brasileiro. Talvez o fato dele estar na mesma faixa etária que eu tenha me dado um encanto especial e uma vã esperança de algum dia estar no mesmo patamar.

Tamanha surpresa me acometeu o fato de perceber que lá estava, com título e tudo, um conto escrito por mim. Não era o único, mas não eram todos também. Ainda assim, minha revolta cegou meus olhos de raiva por ver, bem na minha frente, meu sonho realizado sob o nome de outra pessoa. Minha possessão me fez atirar o livro com tudo no chão e sair batendo o pé da livraria, que afinal não tinha culpa nenhuma. Liguei para a editora buscando informações. "Alô? Alô eu sou um escritor amador e gostaria de dizer que tive textos meus plagiados por um autor que publicou um livro aí nessa editora. Ah, só um minutinho (música automática de telemarketing)". Desisti no décimo-quinto minuto de espera mas não desisti de fazer justiça. Fui pessoalmente até a editora, mais de uma vez, buscando informações. Entrei em contato com a acessoria do plagiador mas não obtive retorno. Sem dúvidas e sem mais possibilidades, entrei com um advogado para requerer a autoria dos meus textos. A autoria dos meus textos. A possessividade que eu possuo por eles me deixa doente, a possibilidade de alguém se consagrar às custas deles me deixa pior.

Uma noite, após a minha massante rotina, recebo um telefonema. "Alô? É você quem está me processando por plágio, certo? É você então? Sim, sou eu. Sei que o processo que você abriu não vai dar em nada e por isso mesmo resolvi ter uma conversa contigo. Mas você sabe que estou certo? Aqueles textos são meus! Eu os publiquei em meu blog, eu os escrevi! Calma lá, você os escreveu num blog, mas não há nenhum documento que garanta a autenticidade de seus textos. E você acha que vai conseguir? Vou, porque agora tenho dinheiro, posso fazer o que estiver ao meu alcance para manter esses textos sob a minha autoria. Você é nojento seu filho da p. Calma lá, eu não fiz nada demais. É raro achar alguma coisa literária nesses sites da internet. A maior parte das coisas são pedaços soltos de poesia ou algum texto bem fraco. Mas no seu caso foi diferente: gostei do que eu li. Sei que a chance de algum dia algum de vocês, escritores de acaso, publicarem alguma coisa é praticamente nula. Por isso mesmo tomei a liberdade de pegar emprestado alguns textos seus. Quer dizer que você pegou texto de outras pessoas também? Talvez sim, talvez não. Se sim, a maior parte dessas pessoas nem vai desconfiar: você foi um caso bem à parte. Não esperava que isso acontecesse. E que respaldo tem um escritor que não escreve aquilo que afirma escrever? Importa como eu cheguei aonde estou? Poderia afirmar que era um catador de lixo que isso só seria mais mídia para mim. As pessoas não se importam com o que o levou a escrever ou com o porquê os escritores continuam escrevendo, elas só sabem da sede delas próprias de ler alguma coisa que as agrade ou mexa com os seus sentidos. Os leitores são uns egoístas. Talvez algo disso tudo que você tenha dito faça sentido, mas ainda assim nada justifica o fato de você ter roubado a autoria dos meus textos. Pelo menos assim você pode vê-los publicados uma vez. Não com o seu nome, é verdade, mas ainda assim você viu seus contos impressos em páginas, papel e tinta. Não te dá um certo orgulho pessoal, um certo regozijo de ver naquelas páginas as suas letras escritas? Sim, de fato, mas quero vê-las com o meu nome e não o seu. É algo com o qual você terá de se conformar. Essa ligação, caso não tenha percebido, é um forte delato a meu favor. Pagarei bem para que essas palavras não venham a público. Passar bem.".

28 de abril de 2007

Clichê

Se eu pudesse juntar toda a minha inveja de modo a condensá-la em moeda de troca para algo que minha inveja jamais seria capaz de alcançar com seus magros dedos, com certeza seria a composição dessa música:

Chega de saudade
Vinicius de Moraes / Antonio Carlos Jobim

Vai, minha tristeza
E diz a ela que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece
Que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer

Chega de saudade
A realidade é que sem ela
Não há paz, não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim
Não sai de mim
Não sai

Mas se ela voltar
Se ela voltar
Que coisa linda
Que coisa louca

Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei na sua boca
Dentro dos meus braços os abraços
Hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calado assim,
Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio
De você viver sem mim
Não quero mais esse negócio
De você longe de mim...
Vamos deixar desse negócio
De você viver sem mim...

20 de abril de 2007

Manifestante

Vai o manifestante
Fazer exame de corpo de delito
Na polícia
Após ser agredido
Pelo policial?

12 de abril de 2007

Voluntário

(inserir citação aqui)

Profira em voz alta as palavras "trabalho voluntário" e concentre-se nelas até o final do texto.

Quando fui convidado para participar da Abeuni pensei na possibilidade de fazer algo que a muito tempo eu cultivava dentro de mim. Já tive claras manifestações desse sentimento inominável que move o coração de quem dedica parte da sua vida em prol do outro através de outras ações que ao longo da minha vida eu tomei parte. A coisa toda do trabalho era nebulosa: mal sabia exatamente o papel que eu ia exercer. Tinha uma noção muito distante do que era de fato o trabalho voluntário.

E passaram quatro dias. Sono, cansaço, fome às vezes e uma sensação diferente. Foi uma das primeiras manifestações sinceras de coletivo que eu presenciei em toda a minha vida, com pessoas que não se furtavam do trabalho para que o todo fosse realizado. Não sei explicar muito bem com palavras o que foi presenciar a pobreza, não apenas de recursos financeiros, mas sim uma carência de informação e atenção. A parte segregada pelos governos e mesmo pela sociedade necessita de atenção, qualquer dez minutos de conversa fiada ou duas horas para se ouvir os problemas da vida. Precisa de um abraço, qualquer coisa que os faça esquecer por uma fração de dia que a vida não tem tanto colorido quanto os lápises de cor e desenhos pendurados na parede. Precisa saber o que nós sabemos e esquecemos por não achar importante, esse tanto escondido nas desdenhosas aulas de biologia, geografia, história.

As brincadeiras nos fazem lembrar do papel que exercemos, essa minúscula parte que faz toda a diferença no resultado final. Brincamos para espantar o sono, lembrar que sorrir é fundamental, principalmente para quem a maior parte do tempo não tem motivos para sorrir. Cantamos a tradição de gerações passadas para lembrar que tudo isso só existe por conta da iniciativa dos que vieram antes de nós. Agradecemos, todos. Choramos (alguns só depois, quando chegaram em casa) a tristeza de quem talvez chore todos os dias e a inevitável despedida de quem já teve seu papel cumprido, cada qual em seu posto.

Ficou na boca esse gosto, esse vício, a vontade de gritar tudo de novo. Os olhos repassam imagens e vídeos de impressões e lembranças. A indignação ganha novo sentido, a justiça (a falta dela) ganha uma personificação esquelética e mórbida, real. Eu, criança insistente em mudar o mundo, percebi que mais que consciência política é muito pouco perto desse muito feito em pouco tempo. Os livros de tratados políticos e teorias tornam-se enfadonhos e descartáveis. Sobram os olhares famintos por mudança recheando morros, casas e favelas.

Diga "trabalho voluntário" novamente e tente sentir algo. Com palavras fica difícil, mas um resíduo de sentimento se depositou nesse texto e eu espero que você o leve para casa e durma com ele para ter um novo motivo para chorar.

26 de março de 2007

Viajar

Acho a descrição um dos mais ingratos estilos de texto possíveis. Isso porque definir em palavras qualquer coisa, cenário, sentimento ou mesmo uma palavra da língua portuguesa é algo que exige minúcia de quem escreve, quase como se fosse necessário incorporar o tema e buscar em si mesmo qualquer coisa que exprima exatamente (ou da melhor maneira possível) aquilo que se deseje fazer por conhecer. E o verbo viajar tornou-se exatamente isso: uma palavra difícil de se definir sem se fazer citar exemplos palpáveis e ou experiências pessoais. E é nesse clima de bossa, de uma saudade da própria saudade, dos tempos em que se tinha algo/alguém a se esperar, que eu descreverei o intransitivo verbo viajar:

Viajar, de verdade mesmo, é transportar-se para outro lugar. Não importa se você quer realmente ou não ir para esse lugar, fato é que você vai se surpreender com as milhares de variáveis novas que se apresentarão diante dos seus olhos e com as quais você não contava quando citou em uma conversa passageira o nome daquele lugar ou cidade. Tudo é diferente: as ruas, as construções, a língua, as pessoas, a mão da rua. As pessoas passam despreocupadas no seu dia-a-dia e você se impressiona com o grau de novidade que aquilo é para você e que é indiferença para quem passou a vida inteira ali naquele lugar.

O ar tem outro cheiro (que às vezes é cheiro nenhum, depende de onde você veio) e o céu tem mais estrelas. As nuvens são reproduções de quadros de campos invertidos, com plantações de algodão e grama azul meio-dia. Os carros serão muito mais novos e modernos ou surpreendetemente mais velhos, mas todos andam e isso é o que importa. As pessoas andam sem pressa alguma. É estranho conceber que as pessoas andam até o trabalho ou de bicicleta ou de carona com um vizinho. Aliás as pessoas são muito mais educadas ou mais duras; não falta educação, mas impessoalidade com que se trata um desconhecido dá o charme ao lugar.

De ônibus, carro, barco, é aquele mato baixo que corre as beiradas, muito rápido, muito devagar. De avião é aquele medo da altura e a insípida comida servida pelas aeromoças de saia. Aliás saia é o que não falta onde se está: as mulheres tem um estilo diferente, nada daquela mistura danada que tem no Brasil. É raro ter o corpo moreno das brasileiras, mas as mulheres de todo o globo possuem um charme pessoal e impossível de migrar com a pessoa. As praias onde elas se deitam, ou passeiam a pé, são de areia branca e um barulho de mar que por si só fala muito sobre si.

As noites tem mais lua, lua de prata, e tudo é tão mais sedutor do que a mesmisse de todos os dias onde se vive. Os preços mudam de acordo com o câmbio, a comida tem um tempero diferente. A globalização propicia muita coisa, mas a comida daquele lugar, só naquele lugar tem aquele "a mais". As bebidas podem mudar de rótulo, nome, mas a mão que mistura a bebida que você vai beber são de lá, daquele lugar. O colchão é de hotel, quando se tem. O chão se torna mais macio próximo da hora de dormir.

Nada é como se estivesse em casa. E viajar tem esse todo de infinito que cabe em um único vernáculo, é uma saudade adiada do instante da partida até o fim da vida, pois não há quem viaje que não queira partir novamente. É nascer e morrer, novamente.

9 de fevereiro de 2007

Retrato II

"Saí do trabalho um pouco mais tarde que o usual. Os recorrentes atrasos dos últimos dias me prenderam por algumas horas a mais no escritório. Fora isso, a rotina manteve sua constância. Estava nos vagões do metrô da cidade às 22 horas e já quase às 23 estava no usual caminho para casa. Do metrô até minha casa é uma pequena caminhada que eu repito há uns doze anos. Minha mãe perdeu a preocupação, desde a escola é a mesma coisa, e agora que estou trabalhando não seria diferente. Mas essa noite algo diferente aconteceu: foi perto de um trecho um pouco mais deserto da rua que eu senti uma mão segurando meu corpo e uma ponta de faca no meu pescoço. Era um homem. Ele falava com aspereza e me dizia que se eu gritasse ele me matava ali mesmo. Não o desobedeci e esperei para ver o que ele queria comigo. Com um pouco de relutância e luta, ele me carregou para uma pequena viela escura, no caminho da minha rua. Começaram a rolar as primeiras lágrimas pois eu sabia o que ele queria de mim. Ele voltou a me ameaçar e minhas pernas começavam a tremer de medo. Guardou a faca em algum lugar e com as duas mãos passou as mãos nos meus seios. Fiquei paralizada, meu corpo inteiro tremilicava e suava frio. A respiração dava pequenos socos e senti vertigens, vontades de desmaiar e não sentir mais aquele homem atrás de mim. Após alguns minutos (que me pareceram horas) daquela tortura, ele me jogou no chão. Deitou seu corpo pesado em cima de mim e pela primeira vez vi seu rosto: ele estava claramente alcoolizado. passou a mão por dentro da minha saia e começou a tirar minha calcinha. Senti o pânico da morte. Implorei a ele que por favor não fizesse nada, que tinha família, noivo. Nada o consolou. Prendi com as pernas a roupa de baixo e ele cansado da luta puxou a peça do meu corpo, ragando-a. Ele já abaixava as calças, ajoelhado entre as minhas pernas."

"Aquela vadia é uma ingrata. Trabalhei a vida inteira como ajudante de marceneiro, numa oficina que fazia móveis por encomenda a quatro quadras de casa. Com a queda no número de pedidos, meu patrão me despediu. A notícia foi má recebida em casa, a minha mulher teve um surto e falou que naquela noite não dormia em casa. Passei a noite na casa de um amigo e no dia seguinte voltei para assumir meu posto de homem da casa. A mulher bateu o pé e disse que eu não voltava para casa sem um emprego. Ela precisava do dinheiro para alimentar meus filhos, que são quatro, todos morando com a gente. Fiquei puto. Passei a dormir na casa de outros companheiros, um diferente a cada noite. O pouco dinheiro que eu ganhava, pedindo na rua ou em bicos que eu conseguia, gastava em cachaça no bar da esquina e naquelas máquinas caça-níqueis. Um dia eu estava realmente mal. Fazia pouco mais de um mês que minha mulher havia me expulsado de casa. Tomei várias doses de pinga naqueles copinhos americanos onde geralmente se serve café. Mal o colega servia a pinga, eu já virava. Comi uma marmita no bar mesmo, que a fome já era grande. Por causa da bebedeira, guardei a faca no bolso. Eu nem sabia o que eu tava fazendo direito, achei que a faca ia ser útil, mas depois de um tempo a idéia parecia totalmente absurda. Tomei a última e fui embora, sem um tostão furado no bolso. A rua se desenhava torta nos meus olhos. Os pés não obedeciam direito e os passos vacilavam constantemente. Resolvi sentar numa mureta e esperar a tontura passar. Era só eu e a rua, todo mundo já tava dormindo, eu acho. Foi ai que passou uma moça na rua com o passo desapressado. O cheiro dela me lembrou dos tempos bons com a mulher, que hoje já tava velha e estrupiada. Fui atrás dela. Pensei em pedir um trocado ou lugar para passar a noite, quando a minha mão foi para o bolso da calça e sentiu a faca. Fiquei possuído pelo diabo, puxei a faca e fui em cima dela. Botei a faca no pescoço e pensei no que ia pedir. Aí senti aquele corpo quente, aquele cheiro bom de perfume. Dei uma olhada para a rua para ver se alguém passava. Achei perigoso ficar com a mulher ali, então puxei ela para uma viela escura, a poucos passos dali. Ameacei-a e logo em seguida pûs as mãos no corpo dela. Que morena gostosa! Barriguinha sarada, os peitos grandes, não exagerados, a mulher tinha um corpo de não se desperdiçar. Passei a mão no corpo dela várias vezes, inclusive por baixo da roupa, que era muito mais quente e começou a me dar um tesão danado. Deitei-a no chão de pernas abertas e me ajoelhei perto da barra da saia dela. Tirei a calcinha dela a força, com tudo e abaixei as calças. Ela lutou muito tentava se afastar de mim mas eu voltei a puxar a faca. Falei para ela que só queria fazer isso e não ia machucar ela depois, mas a vadia não sossegou. Guardei a faca de novo e dei uns socos nela, que não iam matar a desgraçada, mas ia deixar ela mais macia para eu terminar o serviço. Após umas porradas ela sossegou e abriu as pernas para mim. Ô morena gostosa! Fazia tempo que eu não sentia as pernas de uma mulher tão boazuda assim. Começamos a trepar e, se dependesse de mim, eu ia ficar um bom tempo com a mulher."

"O crime nas cidades grandes anda cada vez pior. Eu que sou policial militar há quinze anos sei bem como os bandidos ficaram mais espertos nos últimos tempos e como o trabalho de policial passou a ser sinônimo de um trabalho inseguro. É tensão e medo todas as horas do dia. Mas as coisas não foram assim nesse dia e eu estava a caminho de casa novamente. Pensei no momento de chegar em casa e rever meus dois filhos e minha esposa. Morria de fome também e precisava jantar. Fazia o caminho de todos os dias, com a típica sacola onde levava a farda e outras coisas de todos os dias. Eram precisamente 22:47 quando passei por uma rua aparentemente deserta, o trecho mais vazio até minha casa, quando comecei a ouvir choros e soluços vindos de uma viela, perto de um poste e um orelhão. Vi uma sombra em cima de outra e após um tempo com meus olhos se acostumando a escuridão percebi que era um casal transando. Mas a mulher chorava muito e não hesitei em puxar a arma de dentro da sacola, presa ao cinto, e apontar para o estuprador. Gritei "mão na cabeça, filho da puta!". Ele demorou um bom tempo a perceber que estava falando com ele. Mas ao ver a arma apontada contra ele, ele não hesitou em botar as mãos na cabeça. Fiz ele deitar no chão, ainda com as mãos na cabeça, e revistei o cujo. Não encontrei nada senão uma faca daquelas comuns com ponta e serrilhada, típica faca de cozinha. A moça descomposta chorava sentada com as costas contra a parede. Perguntei o óbvio para ela e ela confirmou que ele realmente era um estuprador. Prendi o delinquênte com o par de algemas da minha sacola, pedi a ela paciência e voltei ao orelhão para pedir uma viatura no local. Em cinco minutos, tudo preparado. Confesso que fiquei perplexo, não pelo fato de pegar mais um marginal em flagrante, mas pelo fato de que era a primeira vez que havia presenciado um estupro. A moça continuava chorando e pedi a ela um pouco mais de paciência: ela precisava me acompnhar até a delegacia para prestar queixa e fazer exames que constatassem o crime. Fiquei mais tocado pelas lágrimas ao olhar aquele rosto e perceber uma leve semelhança com o de minha mulher. Mais ainda: ela tinha traços bem parecidos com o da minha filha. Fiquei horrorizado com a coincidência e o sangue me ferveu. Estava a um passo de cometer a pior das faltas no meu trabalho, após quinze anos de serviço."

O policial foi e voltou pelo trecho da viela com a rua de onde veio algumas vezes. Estava nervoso, desnorteado. Sabia que em breve a viatura chegaria ao local e que se fosse fazer algo, teria de fazer logo. Era fato que o que aquele estuprador ia sofrer na cadeia talvez compensasse as imagens da sua mulher e da sua filha chorando, vítimas do estupro. Não aguentou mais. Pensou em executá-lo ali mesmo, mas isso renderia problemas a ele. Num golpe de astúcia, o policial jogou as chaves da algema na mão do criminoso. "Se solta e dá o fora!". A vítima do crime ficou indignada e perguntou como ele era capaz de soltar um criminoso após pegá-lo em flagrante. O bêbado não hesitou e como pôde soltou uma das mãos da algema, o suficiente para ele se levantar e sair correndo em disparada, na direção oposta de onde todos os personagens haviam entrado em cena e onde estava o policial. Este saca a arma e efetua disparos. O primeiro acerta em cheio as costas do lado direito, região do pulmão. O segundo vai direto para a cabeça e derruba efetivamente o marginal. Mesmo após vê-lo caído, o policial não pára e dispara as quatro balas restantes do revólver 38 no corpo. Ele dá uns passos e verifica os batimentos cardíacos pelo pescoço. Ele estava morto. Retornando para perto da mulher, o policial diz "Lembre-se: ele tentou fugir". "Ele tentou fugir", repetiu a mulher maquinalmente.

30 de janeiro de 2007

A tragédia é universal

Acredito ser péssimo crítico de arte, principalmente em matéria de cinema. Sou um cara muito chato para filmes: gosto de filmes que me façam sair do cinema com dor de cabeça e que tenham me guiado ao longo de seu enredo por todo o tipo de sensação e sentimento possível. É raro que as duas coisas aconteçam ao mesmo tempo, mas ontem isso aconteceu: fui assistir Babel.

Não minto que tive algumas motivações para querer ver esse filme. Primeiramente me guiei pelo falho instinto do "indicações a prêmios famosos", o que quase sempre me engana soberbamente. Depois percebi o casting do filme, Brad Pitt, Cate Blanchett, Gael Garcia Bernal e a direção de Alejandro Gonzáles Iñárritu, cujo trabalho até hoje me passou levemente despercebido senão por algumas cenas perdidas de "21 gramas". Tudo soava bastante tentador, até o momento que fui procurar saber um pouco sobre o enredo do filme. O fato de serem várias histórias paralelas em lugares diferentes do globo que de alguma maneira se conectavam sôou de maneira sedutora e não pude resistir mais.

E o filme superou minhas expectativas. Não vou dar detalhes da história, mas posso dizer que a maneira como o filme é costurado dá todo o charme à película. O gênero de histórias paralelas que se unem para dar liga a uma história maior já foi bastante explorada por outros diretores, mas Babel não faz um elo direto entre as histórias e o que liga cada trecho é algo bem sutil. É possível inferir diversas coisas do filme, ainda mais pelo grau de realidade que cada história em cada país é retratada e a diferença e o choque de cultura expostos. A trilha sonora de responsabilidade Gustavo Santaolalla, mesmo compositor da trilha de Diários de Motocicleta, auxília a dar toda uma atmosfera ao filme, independente do país no qual a cena se passa.

Babel, enfim, é um filme comovente e consegue mostrar a quem assiste a triste realidade do mundo hoje. Não apenas do México, Marrocos e Japão, mas das pessoas que vivem nesse mundo caótico de diferenças e intolerância. A linha que une a base do filme pode ser meio fraca e talvez forçada em alguns pontos e talvez a não-linearidade dos fatos renda alguma dor de cabeça aos menos cientes da temática do filme, mas as histórias separadas representam perfeitamente que a dor existe em qualquer lugar do mundo sob diferentes formas. Afinal, somos seres humanos.

15 de janeiro de 2007

Palavra que faz chorar

São Paulo, 15 de janeiro de 2007

Querida,

Recebi sua carta e sua foto. Como sempre, você está deslumbrante, não tenho muito o que falar, porque na carta anterior (que eu não enviei) já havia te dito tudo que eu acho de você. Vi sua foto mais atual e de bate-pronto lembrei de quando te conheci, ano passado. Primeiro não dei bola, depois passei a te olhar, depois era tarde demais. Eu lembro que teve uma semana que perdi minha saúde só de pensar em você, sucederam-se febres, gripes, dores na garganta, depressão e dores de fazer qualquer cardiologista morrer de dó.

Eu nem recebi a notícia da sua partida. Quando fui me dar conta, você já estava lá do outro lado do mundo. Se fosse uma viagem de férias, ou mesmo a trabalho, talvez eu não ficasse tão mal. Mas você vai ficar por aí. Abandonar tudo, começar de novo e me deixar aqui, estático e de coração na mão. Fingi por uns dias que nem ligava para isso, mas eis que hoje me deparei com você, com sua foto, com sua carta. Você me botou mal que foi o diabo. Lembrei, da sua foto, que nós nunca conversamos direito, nós nunca tiramos fotos juntos, lado a lado. Ficou um vazio aqui. Quase editei algumas fotos nossas para botar nós dois juntos, mas não ia fazer sentido, nós nunca estivémos juntos.

As coisas por aqui estão indo, estão passando. Brasil, São Paulo e São Paulo novamente gozam de uma grande apatia do pós ano novo. Voltamos ao trabalho e tudo ficou chato. Esquecemos nossas promessas de ano novo (a cueca verde-esperança foi lavada e encostada na gaveta), não sobrou peru ou Chester e as lojas estão abarrotadas de promoções de panetones. Tudo ficou irremediavelmente chato sem a sua presença nessa posição geográfica do globo.

Sei que talvez nunca mais voltemos a nos falar. A novidade torna o antigo desinteressante, mas tente não me esquecer. Aguardo outra carta sua, outra foto sua. Prometo que mando de volta a resposta, uma foto minha e um vidrinho com lágrimas.

Beijos.

7 de janeiro de 2007

Retrato I

"Bateu à porta três vezes, enquanto se protegia da chuva forte que mantinha em suas casas a maior parte dos cidadãos. Eram onze, onze e meia da noite, não dava para se ter noção. Protegido por uma capa de chuva barata, o homem antes de tocar a porta novamente foi interceptado pelo morador do pequeno quarto nos fundos da casa no bairro classe média-baixa. 'É você? entra' disse após se dar conta da visita esperada. Fechada a porta, o visitante já retirava a capa que não o salvou de todo da tempestade. O inquilino retirava uma garrafa de uísque da geladeira e a forma com alguns cubos de gelo faltando enquanto propunha ao cavalheiro que se sentasse à mesa. O diálogo teve início assim que o homem percebeu o cinzeiro cheio de cinzas enquanto o amigo servia a bebida:

- Fumado demais, não? Ainda vai te fazer uma mal desgraçado isso.
- Fumo porque sei que o que vai me matar não é o cigarro.
- O fígado?
- Talvez, antes fosse.

Um gole no copo gelado traz um quentume na garganta do visitante.

- Vim para falar sobre umas questões do partido. Acredito que você saiba algumas coisas.
- Só sei que o governo está atrás de nós. Saí de casa assim que o primeiro dos nossos foi preso, não tive tempo para acompanhar as notícias desde então.
- Foi difícil de te achar.
- Eu sou perspicaz meu caro: me livrei de uma ditadura com um capeta bem pior no governo. Não é nessa que vão me pegar.
- Você talvez não, mas já somam as dezenas de homens nossos que andam sumindo nas ruas da cidade.
- Esses caras são fodas, acham que pegar qualquer zé ruela vai dar alguma resposta. Os grandes como eu fogem rápido. Deve ter companheiro nosso na Europa a essa altura.
- Talvez... Escuta, invadiram nossa sede...
- Tinha alguém lá?
- Alguns membros. Levaram documentos, cofres e até a nossa secretária para um interrogatório. O que havia de mais importante já fora retirado.
- Menos mal. Mas conta, tu não vieste aqui apenas para falar que estamos num mato sem cachorro ou que nossa sede foi invadida.

Outro gole na bebida, dessa vez seco, quase direto.

- Eles pegaram sua mulher, doutor...
- Ela não estava em São Paulo.
- A polícia especial descobriu de alguma maneira. Querem usá-la para que o senhor se entregue. Dizem as línguas que se o senhor não se entregar em 48 horas, vão começar a aprontar com a mulher.
- Que absurdo... Esses caras não tem o menor pudor. Veja a merda em que se país se encontra: até surrar mulher para abafar uma minoria na causa política. Que voz nós tivemos no congresso, na câmara, mesmo na imprensa? Nenhuma. Agora, para pegar um velhote de 50 e poucos anos, que a polícia incopetentemente não consegue pegar, vale tudo. Pro inferno com essa ditadura.

O homem pôs-se novamente a fumar: acendeu um cigarro encostado no cinzeiro e o segurava entre os dedos, enquanto se punha pensar de frente para a geladeira. Após três pitadas seguidas de baforadas contra uma janela entreaberta, enunciou:

- Um dia meu caro, esse país será livre. Haverá espaço e voz política para todas as pessoas e todos os partidos. Não haverá mais censura e essas mentiras que nós lemos no jornal. O povo tomará gosto por defender seus direitos e se insurgirá contra os tiranos e generais. Vejo o povo brasileiro entoando o nosso hino nacional, o orgulho de ser brasileiro. Eu enxergo longe, meu filho, eu vejo a abertura política. Se não enxergasse, não teria lutado até hoje, não teria fugido até hoje.
- Eu acredito que sim, doutor, mas o dia em que houver tudo isso, nós seremos esquecidos.
- É...

Nesse momento, bate à porta um terceiro.

- Deve ser a mulher da casa em frente. É minha amiga, a essa hora me traz um pouco da janta e o jornal do dia.

O rapaz ainda pingando abre a porta. Para sua surpresa, não aparece uma mulher e sim vários homens fardados, indiferentes à chuva.

- Mãos à cabeça, vocês estão presos."

4 de janeiro de 2007

Arte on demand, poesia contra a morte e outros temas

Foi lendo a antologia dos primeiros anos d'O PASQUIM que eu li uma entrevista com Paulo Mendes Campos sobre o papel e a valorização da arte (isso já nos anos 70). Ele declarava que era difícil viver de adaptações e tudo o mais, pois era necessário muito mais trabalho para conseguir ganhar o mínimo necessário para ele sobreviver. Antes isso fosse algo isolado, mas eu percebi de muitas leituras minhas que a maioria dos escritores realmente precisam dar muito duro para conseguir reconhecimento e dinheiro. E dinheiro passa longe de significar luxo, estou falando de subsistência. Claro, os caras provavelmente estavam tirando uma casca do governo, onde na mesma entrevista comentava-se que o Brasil era um dos poucos países onde a arte era um bem desprezado e pouco valorizado (bem típico de militares, diga-se de passagem), mas no contexto dos dias de hoje, é muito diferente?

Penso: suponha que algum dia eu venha a escrever profissionalmente e de repente me depare com essa onda de desvalorização da arte. Paro alguns instantes e tento imaginar, minha imagem é meio que de desespero com tristeza. Acho tão triste, e em parte compreensível, que hoje não se tenha uma necessidade por arte. Lembro quando, numa das minha idas ao Itaú Cultural, vi uma família inteira que foi ver a mesma exposição que eu. Perguntei-me quantas famílias daquelas deveriam fazer isso. Talvez o principal bloqueio em relação a arte seja a associação com algo que apenas poucas pessoas possam entender ou fazer, meio que uma elitização do termo. Imaginem então alguém que tente viver exclusivamente de arte, como aqueles artesãos que vendem quadros em azulejos no centro de São Paulo e na avenida Paulista.

O mais engraçado é que eu nunca consigo chegar a uma conclusão quando o tema é arte. Aparecem tantos ramos que dependem do assunto e desencadeiam novas discussões que bota qualquer um perdido. Para mim, no final das contas, arte é uma diversão, seja criar como assistir. Lembro daquelas aulas de arte que tínhamos no primário: fizemos até reuniões na casa de colegas para fazer algo legal. Era muito divertido. Acho que estou ficando velho.

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Comprei um livro do Drummond novo (para a coleção) já faz um tempo: "A Paixão Medida". Eu quis comprar os livros do homem em ordem cronológica de publicação, mas como as prateleiras de poesia em livrarias não são as mais fartas, acabei pegando esse livro mesmo, já que mais hora menos hora ele ia figurar na minha prateleira. Fui ver que foi um dos últimos livros dele. Li aquela introdução histórica do papel no livro na bibliografia do autor e percebi que era uma fase de total maturidade do poeta, algo como a necessidade de escrever para lutar contra a morte.

Fiquei muito perplexo com isso. Eu como jovem que sou talvez não entenda muito disso. Mas tento conceber como é imaginar que dentro de alguns anos morrerei e preciso verbalizar tudo que eu puder, antes que eu morra, para os que ficam entenderem o que é realmente a vida, passados todos os anos como ser humano e como autor. Resultado: encostei provisoriamente o livro, se o ler, não entenderei.

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Novamente o "padrinho" desse blog se faz presente. Certo dia indaguei sobre o primeiro capítulo do livro que ele estava escrevendo e que pedi na mais pura curiosidade do gênero "qual o estilo desse cara". O resultado é que ele me explicou o que se passava para acontecer tal atraso e de quebra me disse de onde veio a inspiração para o livro. Era um conto que, por não caber em si mesmo, acabou desabrochando em um pedaço de uma história maior e no final acabou virando um capítulo de um livro. Essa história é velha de guerra para quem já experimentou escrever alguma vez, mas algo me fez pensar: esse tempo todo eu nunca arrisquei uma narrativa um pouco mais longa, mais elaborada. Será que eu consigo?