26 de agosto de 2008

Retrato IV

Súbito o susto ao me deparar pela manhã ao lavar o rosto o fato que não possuia mais boca. Fora apagada da minha existência como se por um capricho de Deus houvesse a borracha do existencial e com algum atrito sumisse com minha boca. Queria abri-la, por dentro, mas a pele a envolvia como a mais forte fita.

Desesperado, saí de casa em busca de amparo e quando percebo estou no meio da rua de pijama. A porta magicamente some atrás de mim. As pessoas andam indiferentes a sua situação: sem sorriso, sem boca. Entro em um banco e tento pegar a caneta com a qual se preenche os dados dos depósitos nos envelopes, quando sou duramente repreendido pelo guarda com uma porrada na mão. Ele, incapaz de falar, me olha com reprovação e saio.

Torno à rua, mas não estou mais lá: me encontro agora num desfile de carnaval. As mulheres sem bocas persistem e rebolam seus corpos semi-nus para uma platéia que, na falta de grito, arregala bem os olhos para poder ver e demonstrar sua aprovação. Sinto um beliscão do diretor de evolução da escola, que me aponta para o fim da avenida (pedia que eu fosse para lá...) e fazia mimicas de alguém desfilando (...alegremente). Como é possível ser alegre sem sorrir?

Ao final, desemboco por outra travessa do tempo-espaço e me encontro numa editora de um influente jornal. Desesperado, pego a primeira caneta que me aparece e um pedaço de papel e chamo atenção de uma pessoa qualquer. Tento escrever, mas minha mão vacila insistentemente e a sinto formigar após um certo tempo. Não posso escrever. Meu suposto interlocutor me reprova cerrando as sobrancelhas e mandando eu me fuder com um gesto. Sinto vontade de mijar e entro no banheiro

onde (como já era de se esperar) não estou no banheiro. Estou num cemitério com um jazigo aberto onde não contenho a minha vontade e mijo, ali mesmo. Um cortejo de sem bocas aparece carregando consigo um caixão cheio de textos meus: os que eu escrevi, os que eu não terminei, os que eu não escrevi e os que nunca me passaram pela cabeça escrever. Jogaram com força cova abaixo e foram embora, os homens de roupa e chapéu pretos.

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Quando acordo já é tarde. Sinto a necessidade urgente de escovar meus dentes e cerrar minha boca com a linha e a agulha do improvável, rumo a mais um dia de culto ao silêncio.

3 comentários:

Daniela Yoko Taminato disse...

Também estava eu sem boca.

Mas um dia: a necessidade de falar algo, mesmo sem dizer nada.

Acredite meu caro, a vontade é imanente.
Ela some mas persiste.

Texto excepcional!

Carlos disse...

"!!!!!!" Clap! Clap! Clap!

aline naomi disse...

joãozinho,

estou sem sono e vim dar mais uma olhada aqui, ver se tinha post novos e, como não tinha, estou lendo os antigos (que ainda não li)...

só queria deixar registrado que gostei muito desse conto (?) fantástico.