7 de janeiro de 2007

Retrato I

"Bateu à porta três vezes, enquanto se protegia da chuva forte que mantinha em suas casas a maior parte dos cidadãos. Eram onze, onze e meia da noite, não dava para se ter noção. Protegido por uma capa de chuva barata, o homem antes de tocar a porta novamente foi interceptado pelo morador do pequeno quarto nos fundos da casa no bairro classe média-baixa. 'É você? entra' disse após se dar conta da visita esperada. Fechada a porta, o visitante já retirava a capa que não o salvou de todo da tempestade. O inquilino retirava uma garrafa de uísque da geladeira e a forma com alguns cubos de gelo faltando enquanto propunha ao cavalheiro que se sentasse à mesa. O diálogo teve início assim que o homem percebeu o cinzeiro cheio de cinzas enquanto o amigo servia a bebida:

- Fumado demais, não? Ainda vai te fazer uma mal desgraçado isso.
- Fumo porque sei que o que vai me matar não é o cigarro.
- O fígado?
- Talvez, antes fosse.

Um gole no copo gelado traz um quentume na garganta do visitante.

- Vim para falar sobre umas questões do partido. Acredito que você saiba algumas coisas.
- Só sei que o governo está atrás de nós. Saí de casa assim que o primeiro dos nossos foi preso, não tive tempo para acompanhar as notícias desde então.
- Foi difícil de te achar.
- Eu sou perspicaz meu caro: me livrei de uma ditadura com um capeta bem pior no governo. Não é nessa que vão me pegar.
- Você talvez não, mas já somam as dezenas de homens nossos que andam sumindo nas ruas da cidade.
- Esses caras são fodas, acham que pegar qualquer zé ruela vai dar alguma resposta. Os grandes como eu fogem rápido. Deve ter companheiro nosso na Europa a essa altura.
- Talvez... Escuta, invadiram nossa sede...
- Tinha alguém lá?
- Alguns membros. Levaram documentos, cofres e até a nossa secretária para um interrogatório. O que havia de mais importante já fora retirado.
- Menos mal. Mas conta, tu não vieste aqui apenas para falar que estamos num mato sem cachorro ou que nossa sede foi invadida.

Outro gole na bebida, dessa vez seco, quase direto.

- Eles pegaram sua mulher, doutor...
- Ela não estava em São Paulo.
- A polícia especial descobriu de alguma maneira. Querem usá-la para que o senhor se entregue. Dizem as línguas que se o senhor não se entregar em 48 horas, vão começar a aprontar com a mulher.
- Que absurdo... Esses caras não tem o menor pudor. Veja a merda em que se país se encontra: até surrar mulher para abafar uma minoria na causa política. Que voz nós tivemos no congresso, na câmara, mesmo na imprensa? Nenhuma. Agora, para pegar um velhote de 50 e poucos anos, que a polícia incopetentemente não consegue pegar, vale tudo. Pro inferno com essa ditadura.

O homem pôs-se novamente a fumar: acendeu um cigarro encostado no cinzeiro e o segurava entre os dedos, enquanto se punha pensar de frente para a geladeira. Após três pitadas seguidas de baforadas contra uma janela entreaberta, enunciou:

- Um dia meu caro, esse país será livre. Haverá espaço e voz política para todas as pessoas e todos os partidos. Não haverá mais censura e essas mentiras que nós lemos no jornal. O povo tomará gosto por defender seus direitos e se insurgirá contra os tiranos e generais. Vejo o povo brasileiro entoando o nosso hino nacional, o orgulho de ser brasileiro. Eu enxergo longe, meu filho, eu vejo a abertura política. Se não enxergasse, não teria lutado até hoje, não teria fugido até hoje.
- Eu acredito que sim, doutor, mas o dia em que houver tudo isso, nós seremos esquecidos.
- É...

Nesse momento, bate à porta um terceiro.

- Deve ser a mulher da casa em frente. É minha amiga, a essa hora me traz um pouco da janta e o jornal do dia.

O rapaz ainda pingando abre a porta. Para sua surpresa, não aparece uma mulher e sim vários homens fardados, indiferentes à chuva.

- Mãos à cabeça, vocês estão presos."

Um comentário:

rosie disse...

estou vendo que o Pasquim vem te influenciando bastante, hein!!
e positivamente =)