A minha relação com a poesia é um negócio que não se acerta nunca: um dia morro de desejos, outro dia nem quero saber do que ela é. Hoje vivo mais ou menos nesse hiato entre a necessidade de versejar e um senso estético distante da minha própria poesia, que culmina em uma decomposição própria da busca por um novo eu, uma nova poética. Quando escrevi esse poema, senti-me o próprio Picasso, não pela genialidade do pintor mas pela decomposição e remontagem, pelos múltiplos pontos de vista que buscam responder uma pergunta fundamental da existência da obra e do artista. Culminou nisso, uma poesia muito estranha, que pende para o surreal (nunca abandonarei essa corrente, já é meu sangue!) e uma talvez perturbação de poetas como Augusto dos Anjos, Ferreira Gullar e uma dose praticamente invisível de Haroldo de Campos. Aliás, se me virem escrevendo poemas concretos acreditem que não será coincidência alguma.
Gênese
Despido de meus pecados e desejos
Encontro-me fundamental
No meu estado de instância de homem.
À mesa, a incorpórea metáfora distribue cartas.
Não sei o nome do jogo, mas suo
Como se estivesse apostando minha vida
Na falta de roupas, adereços e memórias.
A mesa carrega uma renda de épocas passadas
E me faz perder a atenção do que tenho na mão
Para me enveredar por entre as fibras
Compostas por mãos de mulheres
Nas agulhas imensas de tricô.
De repente sangue, mais sangue sobre a mesa
E o esfingético croupier repousa
A cabeça numa aura de sangue ralo,
Nem parece sangue de verdade.
Levanto da mesa e procuro um pano
Onde eu possa limpar a matéria inorgânica
E seguir meu jogo, compenetrado em tudo
Menos nas cartas que levava na mão.
Sobre o móvel de canto de sala, um relógio
Dá a batida para a música invisível das horas.
Tic-tac, tic-tac, tic-tac...
Deixa-me nervoso e desejo destruí-lo,
Moe-lo em pedaços sobre o chão de tacos
E ver suas molas se contorcerem de dor sobre o tapete.
Entra pela porta da sala Eunice,
Com seus cabelos presos e boca banhada em gloss
Pedindo um beijo.
Um beijo, um beijo de Eunice.
O beijo desejado, o beijo transcedental, o beijo nu.
Uma súbita indisposição estomacal insurge,
Vomito nos cabelos lisos de Eunice,
Nos lábios de desejo de Eunice.
De maneira tão sublime o rosto e o corpo de Eunice
Agora banhados pela matéria retorcida
De minhas tripas que formam arcos,
Círculos e outras formas geométricas.
Eu vomitei em Eunice.
Ela dispara pela porta com asco,
Como não haveria de ser diferente,
E grita desesperada a destruição de sua beleza.
No tapete forma-se uma piscina funda de ácidos gástricos
E formas geométricas que convidam a um banho.
Salto, em busca da liberdade
Sobre o nojo de mim mesmo
E repouso sobre um triângulo que bóia.
Surge gigante o meu morto sobre o tapete,
Sangrando seus litros pela cara sem rosto
Com as cartas a mão, prontas para uma nova rodada do jogo.
O relógio cai do móvel, e suas peças vêm se juntar
A decomposição do meu corpo sobre o tapete.
As molas rangem,
Engrenagens se remontam sobre a superfície ácida
Para montar um novo relógio sem ponteiros.
Eunice reaparece pela porta aos berros
Aponta para mim e me delata:
Diz que estraguei sua beleza,
Que estraguei seus lábios.
Derrama sobre a minha poça seu vidrinho de cosmético
E uma embalagem de shampoo
Que se juntam a dinâmica do mundo novo.
O ser da palidez borrada pelo seu próprio sangue
Joga sobre a pocilga de misturas o manto da mesa,
O manto entrelaçado por agulhas
Famintas de rendas, de trabalho final.
"Este é seu céu",
Últimas palavras antes do silêncio primordial.
Eu apenas bóio entre os elementos de minha nova composição,
Meu novo mundo, meu novo eu.
Dos vazios
Há um ano
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